Leitura de crônica: Não nos deixeis cair em tentação, de Moacyr Scliar
Ladrão é preso bêbado em igreja: assaltante não conseguiu escapar após beber vinho usado nas missas. (Cotidiano, 29.mai.2001)
O assalto não rendeu grande coisa - um aspirador de pó e um projetor de slides, objeto para ele um tanto misterioso -, mas, considerando que se tratava de uma igreja, não dava para esperar muito mais, de modo que ele se preparou para ir embora, carregando o botim. Foi então que viu, sobre a mesa, as duas garrafas de vinho.
Uma tentação para quem, como ele, gostava demais de um trago. Poderia fazer uma festa, depois, com aquelas duas garrafas. Mas não seria muito fácil levá-las. Já estava atrapalhado com o aspirador e o projetor, objetos relativamente volumosos e pesados. Além disso, garrafa é coisa que quebra. Não, não daria para levar o vinho. De modo que, com um suspiro, optou por renunciar à bebida. Mas resolveu, pelo menos, provar um gole.
Gostou. Gostou muito. Nada parecido às bebidas que ele conhecia, caninha, cerveja. Não, tratava-se de um vinho licoroso, aparentemente muito suave. Vinho canônico, segundo o rótulo. Ele não era muito versado nesses termos, mas deduziu que "canônico" tinha algo a ver com religião.
Tomou mais uns goles e aí começou a ouvir vozes. Duas vozes, para ser mais exato, as duas sussurrando-lhe coisas ao ouvido.
- Beba esse vinho -dizia a primeira voz. - É um vinho de igreja, não pode lhe fazer mal. Ao contrário, é uma bebida abençoada. E você merece, depois de todo o sofrimento pelo qual passou em sua vida.
- Não faça isso - dizia a segunda voz. - Não é o momento. Você já está complicado, pode se complicar mais ainda. Essa voz que lhe diz para beber é a voz do demônio.
- Nada disso - retornava a primeira voz. - Eu sou o seu anjo da guarda. Voz do demônio é a outra.
E assim continuou aquele intrigante diálogo, que ele ouvia bebendo. E já tinha quase esvaziado as garrafas quando foi preso. Bêbado, não ofereceu resistência.
Não se sente chateado por não ter levado o aspirador e o projetor. Afinal, com a crise de energia, quem iria querer essas coisas? O que lhe incomoda é a dúvida: não sabe qual era a voz do demônio, qual a do anjo da guarda. E, por causa disso, resolveu: nunca mais assaltará igrejas.
SCLIAR, Moacyr. Não nos deixeis cair em tentação. Folha de São Paulo, Cotidiano C2, segunda-feira, 4 de junho de 2001.
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